quarta-feira, 3 de março de 2021

Papai Noel dormiu com a mesma roupa...

 

Doraci já acordou pensativa como todos as manhãs de 24 de dezembro. Sete filhos, três netas e uma bis a caminho.  Vestiu o uniforme, jogou água gelada no rosto, escovou os dentes, ferveu seu corriqueiro chá de erva doce e bebeu bem doce.  Saiu ainda meio sonolenta, era 4 da manhã, no ponto de ônibus destelhado absorveu o sereno por mais de uma hora, até que o “Pedrão” passou...

Adentrou o bus, saudou o motorista que ainda estava com remela, sorriu para o cobrador e disse: não esqueça de mim em! Adormeceu por 40 minutos até ser acordada com tapinhas no ombro.

O trabalho era duro, percorria 10 quilômetros varrendo o chão até a hora do descanso da manhã... depois percorria o dobro até a hora do almoço. Nesse dia Doraci estava pensativa, ela que acostumava a alegrar e motivar o time, estava, como dizem “borocochó”.

- Todo fim de ano é assim! Disse uma amiga antiga à outra novata.

Hora de ir embora, bateu o cartão, pegou a caixa com panetone, cidra e uva passa. O agrado que o patrão oferece pelo lucro acumulado o ano inteiro.

Doraci saiu correndo, passou na “feirinha”, comprou roupas, sandálias. No busão não falou com ninguém, mas, aparentemente, ninguém queria conversar. O mesmo motorista, o mesmo cobrador. A única palavra: - hoje já dirigi por 12 horas! “Quem tem ânimo pra resenha”. Pensou Dora, como era chamada pelas netas.

Saltou do ônibus igual canguru, ainda deu tempo de pegar o mercadinho com as portas pela metade. Pediu dois quilos de salsicha, molho, macarrão, tubaína, um monte de paçocas e balas de iogurtes.

Em casa encontrou as crianças jogadas no sofá, vendo TV. A chegada da quase bisavó alegrou o ambiente, abraçou todo mundo com carinho, beijos e afagos. Distribuiu roupas, sandálias e doces.

A filha mais velha preparou a ceia.

Antes da meia noite as crianças faziam a primeira refeição do dia.

A netinha levou ao quarto um prato com a massa, coberta de molho vermelho. Encontrou sua avó roncando, vestida da mesma forma que saiu. Deu-lhe um beijo na testa e disse: - Feliz Natal vovó...  

Goesgoes

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

RECEITA DE ELEIÇÃO

Ingredientes: seu patrão; o gerente; o encarregado; o funcionário puxa saco; o funcionário que ama a empresa; o candidato mau-caráter (favorito do chefe); o/a outro/a candidato/a; você.

Modo de fazer: pergunte a seu patrão em quem ele vai votar; consequentemente será o/a candidato/a dos demais; misture tudo e jogue fora. 

Vote no/a outro/a. 

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Viver é estar morto

 Viver é intensamente ter medo de morrer 

É lutar contra a natureza 

É remar na contramão do percurso da humanidade

Viver é querer ser, ser pra sempre o que nunca será

É estar sempre planejando, mencionando e criando metas

Só se pensa no futuro e mal diz o passado

Viver é ter a certeza que não se vive,

porque o que menos importa é o presente

É, também, conviver com a falta,

principalmente de quem se foi e não viveu

Saudades de quem morreu

Saudades de quem sobreviveu

Saudades até de si mesmo 

Viver, então, é se preocupar com alguém que em breve

Muito breve, terá saudades de você 

E que, pode se arrepender porque não viveram 

e só pensaram em morrer.

Aí, viver é lutar para viver e não morrer 

Porque a vida só tem sentido se seus sentidos forem libertos.

Viver é buscar a liberdade, é ter humanidade 

Porque enquanto a opressão viver.

Viver é estar morto ...

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Crônica de uma visão distorcida

Eu vi dois caras se pegando no Metrô. Que terror.
Um grandão com quase dois metros, braço musculoso e meia barriguinha. O outro era mediano, como dizem, meio troncudo.

Era tanta agarração que dava nojo. Os braços se encontravam aos montes, cabeça com cabeça, rolou até mordida. Pouca vergonha, ainda bem que minha filha não estava por perto, seria um mau exemplo. O grandão chega babava, enquanto o outro, espumando, falava várias indecências.

Ao meu lado estava um senhor, o qual interroguei sobre aquela pouca vergonha. - É por causa do futebol!

Só aí notei que o grande usava a camisa de um time, enquando seu oponente estava vestido com uma regata do time adversário.

Olhando pro outro lado, percebi que dois homens abraçados trocavam carícias e beijos, deu pra ouvir que eles faziam planos, entre os quais: adotar uma criança.

Incrível, enquanto uns se animalizam por banalidades 
(futebol), outros humanizam (com amor). 

Ainda há esperança.

sexta-feira, 24 de abril de 2020


Crônicas sobre a saga da tia da Maria e o corona vírus

Maria tinha uma tia, tinha.  Ela morreu de convid 19, uma doença causada pelo corona vírus, um vírus, trazido para o Brasil por gente rica, mas a tia da Maria era pobre, ela não tinha nada a ver com a chegada do vírus, mas foi quem o recepcionou e morreu.

A tia da Maria fez tudo certinho, isolamento social. Aliás, ela morava no extremo leste da zona leste, fazia dez anos que tinha ido ao centro de São Paulo, na 25 de março. Na ocasião, foi acusada de pensar em roubar um lenço, nunca mais saiu do bairro.

A tia da Maria, fez tudo certo, então. Só saia quando tinha que pagar contas, ficou sem internet porque não sabe usar aplicativo, não pagou a Vivo que suspendeu o serviço. Foi à casa lotérica, não levava máscara, até porque, se nem para os profissionais que trabalham nos hospitais tem máscara porque teria para a tia da Maria? Enfim, foi muito corrido.
Na lotérica a fila era e é quilométrica. A tia da Maria tinha que ficar. Afinal, eram três contas de luz e três de telefone.

Ao chegar em casa, ela fez tudo certinho. Deixou os calçados na porta, tirou a roupa, pegou a toalha e tomou banho frio. Sim, frio, o fornecimento de luz já estava suspenso. Tomar banho frio ao final de dia do outono não seria nada de mais se a tia da Maria não sofresse de bronquite, sinusite e renite. Ela ficou meio gripada, depois constatou-se que não era gripe.

Um dia a tia da Maria estava vendo TV, onde uma reportagem dizia: vamos bater palmas para os profissionais da saúde. 

A tia da Maria abriu os braços, em um momento o mundo parou, em sua mente lembranças da vida veio à tona: lembrou de um dia em que estava no hospital, era na maternidade, com objetivo de ter um filho, aos gritos de: força, vai, força mãe, você consegue, não foi bom fazer? Força, vai.

O resultado foi a morte de um filho, isso há dez anos, violência obstétrica. Chegou a pensar: “ainda bem, foi antes que o corona o matasse”; outra lembrança, não vaga, muito viva: seu filho mais velho sofre de bronquite, dizem que foi herança materna, quando teve crise, ao leva-lo ao hospital, ouvia do médio, que nem olhava para sua cara: - é virose (uma doença que os médicos falam que todos os pobres têm para não perder tempo fazendo diagnóstico). Quando ela tentou dizer: é bron... a resposta: pronto, passa na enfermaria. Próximo.

Ela lembrou também de um acontecimento recente: quando estava achando que era gripe, foi três vezes ao hospital. Nesse dia estava animada, teve conhecimento da notícia de que o governador do Rio de janeiro havia feito o teste para verificar a possibilidade de ter contraído corona vírus. Decepção: pela terceira vez não teve teste. Franzido a testa, a doutora branca e loira disse: apenas gripe. Fique em casa, se puder. Se tiver febre volta. Detalhe: a tia da Maria estava em estado febril.

Após esse conjunto de lembranças, não pode repetir o feito da Copa de 98. Sim, de 98 porque na copa do mundo de 2002 ela estava sem luz elétrica e não viu ao jogo do Brasil. Enfim, não pode se juntar aos moradores do Morumbi, do Pacaembu, de Higienópolis, do Jardins, da Pompéia, da Vila Madalena para bater palmas aos médicos. A tia da Maria, preta, pobre, da periferia não teve motivos para aplaudir. A única coisa que fez foi juntar as mãos, em silêncio. Não chorou.

A tia da Maria tinha uma amiga que não contraiu corona, mas contraiu a fome. Logo após pedido do governador de São Paulo: - Não demita. Foi publicado um decreto que permitia a suspensão dos contratos com as instituições que prestavam serviço para o Estado. Resultado: a amiga da tia da Maria ficou desempregada.

Antes de morrer, a tia da Maria adquiriu plena convicção de que o vírus não escolhe o corpo que vai habitar, mas o Estado escolhe qual vida que quer salvar, a rica. Ela fez tudo direitinho, mas. Jazz.

O filho da amiga da tia da Maria está com corona vírus, esperamos que ele não morra. Nos cemitérios as covas estão abertas e a preferência é o pobre.

sábado, 9 de fevereiro de 2019

Nego boy e a morte do sonho futebol (por Góes)



Não é de hoje que o futebol mata os Jovens. A repulsa que Lima Barreto tinha pelo esporte revela o quanto este surgiu com o forte odor da exclusão e assim o é até hoje. Quantos jovens pretos não morreram com o sonho de ao menos ver um jogo. Quantas meninas tiveram sua vontade sufocada pelo argumento de que, futebol é para homens.

Assim, desde que a pelota começou a rolar nos campos modernos sonhos foram ofuscados. Dentro ou fora dos estádios pessoas foram e são arremessadas ao além.
Torcedores jaz por amor ao time: Damião morreu do coração no dia da final, quando seu time entrou em campo, os rojões, seu coração parou no último estalar; Alexandre cometeu suicídio. Numa carta encontrada na cama lê-se: meu time está para ser rebaixado, não...; uma briga no Metrô, o saldo foi de quatro jovens mortos, muitas outras brigas, muitos outros mortos; o cara chegou bêbado em casa, saiu cedo para jogar futebol: ganhou, bebeu, cheirou. Em casa espancou a mulher até o óbito.

Dentro do gramado também se morre: Serginho, Vivien Fóe, muitos outros. Mas o futebol mata mais fora do gramado.

Nego boy, jovem habilidoso. Sonho: ser jogador profissional; escolaridade: Ensino Fundamental. Causa da morte: insuficiência cardíaca provocada por uso de drogas. Já perdera um braço ao cair bêbado do trem, vivia chutando tudo que era redondo. Depois de passar por vários clubes e ver seu sonho ir para o ralo do vestiário, resolveu narrar seus próprios gols. Na insanidade chegou à seleção dos moribundos, morreu. 

Nego Boy sonhava em jogar no Corinthians; Neguitinho, no Santos; Nego Bel estava certo que vestiria a camisa do São Paulo; Nego, a do Palmeiras; Dener jogou na Portuguesa. Nenhum sobreviveu à exclusão que é o futebol.

Mesmo na solidão da falsa inclusão, jovens quando não acordam sufocados pelo estupro, pela fome, pela amargura do banco de reserva ou as vaias por gols perdidos, talvez sonhando com a copa foram sufocados pela fumaça dos charutos caros dos empresários, dos fabricantes de sinalizadores, dos cachimbos das guerras dos dirigentes.

Nesse esporte quem vive mesmo é o lucro. Quantos "Negos" sofreram o pesadelo de sonhar jogar bola. O futebol mata quem o sonha.


sexta-feira, 8 de junho de 2018

(poemas para depois da Revolução)


Troca olhar

Troquei com os olhos dela.
Ela com olhar feroz invadiu meu olhar de fera.
Ela me olhou eu olhei pra ela.
Olhou-me na bolinha, mirei a menina dela.
Eu com olhar feroz, ela com olhos de fera.
Não me intimidei. Ligeiro desviei,
novamente olhei encontrei os olhos dela.
Ela espremeu, o meu esbugalhei.
Ela notou o meu, o dela eu notei.
O dela bem pretinho, o meu avermelhado.
O meu arredondado, o dela bem redondo. 
Seus olhos contornados, grandes cílios esticados.
Eu olhei de frente. Ela olhou de lado.
O dela mostrou frieza, eu que não esfriei.
Troquei com os olhos que eram dela.
No dela que o meu se fez.
A imagem dos olhos dela brilhava nos olhos meus.
Os olhos meu eram dela.
Os olhos dela eram os meus.