sexta-feira, 24 de abril de 2020


Crônicas sobre a saga da tia da Maria e o corona vírus

Maria tinha uma tia, tinha.  Ela morreu de convid 19, uma doença causada pelo corona vírus, um vírus, trazido para o Brasil por gente rica, mas a tia da Maria era pobre, ela não tinha nada a ver com a chegada do vírus, mas foi quem o recepcionou e morreu.

A tia da Maria fez tudo certinho, isolamento social. Aliás, ela morava no extremo leste da zona leste, fazia dez anos que tinha ido ao centro de São Paulo, na 25 de março. Na ocasião, foi acusada de pensar em roubar um lenço, nunca mais saiu do bairro.

A tia da Maria, fez tudo certo, então. Só saia quando tinha que pagar contas, ficou sem internet porque não sabe usar aplicativo, não pagou a Vivo que suspendeu o serviço. Foi à casa lotérica, não levava máscara, até porque, se nem para os profissionais que trabalham nos hospitais tem máscara porque teria para a tia da Maria? Enfim, foi muito corrido.
Na lotérica a fila era e é quilométrica. A tia da Maria tinha que ficar. Afinal, eram três contas de luz e três de telefone.

Ao chegar em casa, ela fez tudo certinho. Deixou os calçados na porta, tirou a roupa, pegou a toalha e tomou banho frio. Sim, frio, o fornecimento de luz já estava suspenso. Tomar banho frio ao final de dia do outono não seria nada de mais se a tia da Maria não sofresse de bronquite, sinusite e renite. Ela ficou meio gripada, depois constatou-se que não era gripe.

Um dia a tia da Maria estava vendo TV, onde uma reportagem dizia: vamos bater palmas para os profissionais da saúde. 

A tia da Maria abriu os braços, em um momento o mundo parou, em sua mente lembranças da vida veio à tona: lembrou de um dia em que estava no hospital, era na maternidade, com objetivo de ter um filho, aos gritos de: força, vai, força mãe, você consegue, não foi bom fazer? Força, vai.

O resultado foi a morte de um filho, isso há dez anos, violência obstétrica. Chegou a pensar: “ainda bem, foi antes que o corona o matasse”; outra lembrança, não vaga, muito viva: seu filho mais velho sofre de bronquite, dizem que foi herança materna, quando teve crise, ao leva-lo ao hospital, ouvia do médio, que nem olhava para sua cara: - é virose (uma doença que os médicos falam que todos os pobres têm para não perder tempo fazendo diagnóstico). Quando ela tentou dizer: é bron... a resposta: pronto, passa na enfermaria. Próximo.

Ela lembrou também de um acontecimento recente: quando estava achando que era gripe, foi três vezes ao hospital. Nesse dia estava animada, teve conhecimento da notícia de que o governador do Rio de janeiro havia feito o teste para verificar a possibilidade de ter contraído corona vírus. Decepção: pela terceira vez não teve teste. Franzido a testa, a doutora branca e loira disse: apenas gripe. Fique em casa, se puder. Se tiver febre volta. Detalhe: a tia da Maria estava em estado febril.

Após esse conjunto de lembranças, não pode repetir o feito da Copa de 98. Sim, de 98 porque na copa do mundo de 2002 ela estava sem luz elétrica e não viu ao jogo do Brasil. Enfim, não pode se juntar aos moradores do Morumbi, do Pacaembu, de Higienópolis, do Jardins, da Pompéia, da Vila Madalena para bater palmas aos médicos. A tia da Maria, preta, pobre, da periferia não teve motivos para aplaudir. A única coisa que fez foi juntar as mãos, em silêncio. Não chorou.

A tia da Maria tinha uma amiga que não contraiu corona, mas contraiu a fome. Logo após pedido do governador de São Paulo: - Não demita. Foi publicado um decreto que permitia a suspensão dos contratos com as instituições que prestavam serviço para o Estado. Resultado: a amiga da tia da Maria ficou desempregada.

Antes de morrer, a tia da Maria adquiriu plena convicção de que o vírus não escolhe o corpo que vai habitar, mas o Estado escolhe qual vida que quer salvar, a rica. Ela fez tudo direitinho, mas. Jazz.

O filho da amiga da tia da Maria está com corona vírus, esperamos que ele não morra. Nos cemitérios as covas estão abertas e a preferência é o pobre.