Crônicas sobre a saga da tia
da Maria e o corona vírus
Maria tinha uma tia,
tinha. Ela morreu de convid 19, uma doença
causada pelo corona vírus, um vírus, trazido para o Brasil por gente rica, mas
a tia da Maria era pobre, ela não tinha nada a ver com a chegada do vírus, mas
foi quem o recepcionou e morreu.
A tia da Maria fez tudo
certinho, isolamento social. Aliás, ela morava no extremo leste da zona leste, fazia
dez anos que tinha ido ao centro de São Paulo, na 25 de março. Na ocasião, foi
acusada de pensar em roubar um lenço, nunca mais saiu do bairro.
A tia da Maria, fez tudo
certo, então. Só saia quando tinha que pagar contas, ficou sem internet porque
não sabe usar aplicativo, não pagou a Vivo que suspendeu o serviço. Foi à casa
lotérica, não levava máscara, até porque, se nem para os profissionais que
trabalham nos hospitais tem máscara porque teria para a tia da Maria? Enfim,
foi muito corrido.
Na lotérica a fila era e é quilométrica.
A tia da Maria tinha que ficar. Afinal, eram três contas de luz e três de
telefone.
Ao chegar em casa, ela fez
tudo certinho. Deixou os calçados na porta, tirou a roupa, pegou a toalha e
tomou banho frio. Sim, frio, o fornecimento de luz já estava suspenso. Tomar
banho frio ao final de dia do outono não seria nada de mais se a tia da Maria não
sofresse de bronquite, sinusite e renite. Ela ficou meio gripada, depois
constatou-se que não era gripe.
Um dia a tia da Maria estava
vendo TV, onde uma reportagem dizia: vamos bater palmas para os profissionais
da saúde.
A tia da Maria abriu os
braços, em um momento o mundo parou, em sua mente lembranças da vida veio à tona:
lembrou de um dia em que estava no hospital, era na maternidade, com objetivo de
ter um filho, aos gritos de: força, vai, força mãe, você consegue, não foi bom
fazer? Força, vai.
O resultado foi a morte de um
filho, isso há dez anos, violência obstétrica. Chegou a pensar: “ainda bem, foi
antes que o corona o matasse”; outra lembrança, não vaga, muito viva: seu filho
mais velho sofre de bronquite, dizem que foi herança materna, quando teve crise,
ao leva-lo ao hospital, ouvia do médio, que nem olhava para sua cara: - é virose
(uma doença que os médicos falam que todos os pobres têm para não perder tempo
fazendo diagnóstico). Quando ela tentou dizer: é bron... a resposta: pronto, passa
na enfermaria. Próximo.
Ela lembrou também de um
acontecimento recente: quando estava achando que era gripe, foi três vezes ao
hospital. Nesse dia estava animada, teve conhecimento da notícia de que o
governador do Rio de janeiro havia feito o teste para verificar a possibilidade
de ter contraído corona vírus. Decepção: pela terceira vez não teve teste. Franzido
a testa, a doutora branca e loira disse: apenas gripe. Fique em casa, se puder.
Se tiver febre volta. Detalhe: a tia da Maria estava em estado febril.
Após esse conjunto de
lembranças, não pode repetir o feito da Copa de 98. Sim, de 98 porque na copa
do mundo de 2002 ela estava sem luz elétrica e não viu ao jogo do Brasil.
Enfim, não pode se juntar aos moradores do Morumbi, do Pacaembu, de Higienópolis,
do Jardins, da Pompéia, da Vila Madalena para bater palmas aos médicos. A tia
da Maria, preta, pobre, da periferia não teve motivos para aplaudir. A única
coisa que fez foi juntar as mãos, em silêncio. Não chorou.
A tia da Maria tinha uma amiga
que não contraiu corona, mas contraiu a fome. Logo após pedido do governador de
São Paulo: - Não demita. Foi publicado um decreto que permitia a suspensão dos contratos
com as instituições que prestavam serviço para o Estado. Resultado: a amiga da
tia da Maria ficou desempregada.
Antes de morrer, a tia da
Maria adquiriu plena convicção de que o vírus não escolhe o corpo que vai
habitar, mas o Estado escolhe qual vida que quer salvar, a rica. Ela fez tudo
direitinho, mas. Jazz.
O filho da amiga da tia da
Maria está com corona vírus, esperamos que ele não morra. Nos cemitérios as
covas estão abertas e a preferência é o pobre.