domingo, 20 de novembro de 2011

Brasil Negreiro: sonetos do genocídio ...

Brasil Negreiro: sonetos do genocídio ...


Olha pra li. Em pleno morro... Em plena civilização
Brincam na lama — danada de pés descalços;
E os ratos atrás deles correm, rosnam cachorros ferozes
Como motores de tanque de guerra.

Em meio ao compensado, do pântano
Odores espalham-se como fumaça de madeira
No ar o vento pipoca nas portas da gente mórbida,
Tudo parece chama, tudo em chamas

Em meio aos compensados
Perdem-se no mundo terror maníaco,
Quem é fogo? Quem é chama? Quem é esgoto? Ou lama?
Talvez a enxurrada de larva responda.

Em meio a compensados adentram vielas.
Coturnos cutucam o chão de barro duro
Feito touro bruto atrás da flanela de sanguinolento,
Enquanto dorme na cavidade a pomba da paz.

De onde vem? Aonde vai? Das tuas barcas gritantes
Quem sabe a direção será a cabeça valente?
Nesta terra de alguém, cavalos de fogo poeiras levantam.
Galopam, explodem, mas ninguém vê os rastros.

Feliz daquele que de lá, longe nesta hora
Vive em teto de vidro e paredes de verdade.
Aqui, por baixo esgoto imenso,
Do céu nuvens emaranhadas, no ar a pólvora estalada

Veja qual sabor da consonância traz Aurora!
Que música trágica de lá ecoa!
Sinta como arranca a pele o batuque cáustico.
Pelas vielas frias galopando estridente a toda força

Filhos do poder agressivos carniceiros,
Entorpecidos pelo pó branco da sedução
Crianças que a corrupção conquistara
No beco destas favelas gigantescas

Por que corre assim cavalo de fogo?
Por que matas em nome do impávido colosso?
Queria te agarrar pelas costas e degolar-te, sombrio calabouço.

E a pomba branca? Promotora da paz?
Você que engana campanhas invisíveis,
Prepare o peito, palomita da ilusão,
Pomba branca, pomba branca acorde, saia da cavidade.

II
Que importa pro rato cinza a miséria,
De onde muitos são filhos?
Clama o sujo e fedido queijo
Oferecido pelo velho, e não eterno morcego.
Gritem que é melhor morrer!
Desliza a viela ao combate ordenado
Como ovelha enfurecida.
Caçada aos dentes do lobo
Cravada no pescoço magro
Do corpo que a fome já matou.

Do descobrimento à modernidade
Acumulando riquezas.
Lembram as moças indígenas
Que o malfeitor estuprou?
Na América lutas correntes
Cantando seu samba dormente,
Chão de ternura escravidão,
Que queimam solados descalços
Amontoando rabecão

O nazista assassino frio,
Ao fazer a guerra explorou
Lembrando, orgulhoso os parceiros que a propriedade salvou.

Ei! Carniceiros comandados!
Que o velho, mas não eterno morcego criou.
Robôs condenados á desgraça
da miséria que seu mestre matou,
Ratos que corpos fatiaram,
Que roendo em noites claras
podres queijos em bolor.
Capatazes que proclama paz com a guerra,
Faça o que seu mestre mandou


III

Mas...

Saia da cavidade, oh pomba branca.
Chega mais, mais um pouco, não pode enganar a paz.
Louco é o urubu feroz querendo arranca-lhe o pescoço,
O que vê são choros de terror corroendo corações.
É sirene provocante que brota do caveirão... Que fúnebres vultos
Que cena infame e execrável. Que maldade seu senhor promove.


IV

Foi massacre horrendo que o toureiro
Na escura luz amarela avermelha o piso da viela.
Lavando de sangue.
Estalar de pólvoras. Rosnar de cachorro louco.
Multidões de pessoas pretas,
Aterrorizadas a gritar.

Mulheres pretas, raspando panelas vazias
A dar de comer às crias desnutridas.
Adolescentes, moças nuas e assombradas,
Arrastada ao matagal, devoradas e violentadas.

O produtor te faz inúteis
Se estufa o peito, e levanta a cabeça,
O abutre dispara borracha.
O barulho do engatilhar, - treck.

Miolos explodem...

Cercados na lama fervente dos vulcões,
O povo suspira e derrapa sem estômago,
Gritam, dança e cantam a canção. Sedativo,
Embriagados entorpecem o cérebro,
Quem não adere é bruto insensível,
Declama versos contrários de guerra e de luta

E o abutre invade desmoralizado,
Prova da própria incapacidade de ser humano,
Duro coração congelado mira o povo,
Clama às ovelhas obedientes que simbolizam lobo:
Fogo neles!
“É chegada a hora de morrer...

...ou lutar...”

O Robô COP do Governo é frio. . .
Atira, degola e...
Atira, degola e...
Atira...
Muitos mortos. Capataz.

V

Diga senhor da sabedoria do crime!
Diga agora!
Se é loucura... Se é verdade
Tanto horror perante aos olhos?

Ó barraco, em que as chamas espalham
Apagas a fogueira da maldade com o sangue
Venoso espalhado...

Socorres, oh governante, socorres os bancos
Noites, pólvoras, soluços!
Rola barranco abaixo, tempestade!
...Vidas,
jaz!

Quem são estes desgraçados.
Favelados, trabalhadores, prostitutas, operárias
Que recebem não, com a pá e a enxada,
Que ao paralisar excita a fúria do algoz?
Quem são?
- Apêndice da máquina!
Que a metranica apressada dispara
Como um maçarico que ardente sapeca,
Diante a noite traiçoeira...
Diga sábio senhor da verdade,
Escravo da mídia arrogante!...

São os filhos do...

Proletário!

Onde a força apaga a luz.
Onde a televisão abafa
E a vida do povo conduz
São guerreiros entregues
Que combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros assassinados,
Sem paz, sem teto, sem...

...pão

São mulheres encorajadas,
Como Dandara foi também.
Com sede de liberdade,
Com coragem de longe vêm...
Carrega consigo as marcas
Dos filhos de algemas nos braços,
Dos olhos esbugalhados lágrimas de vingança...
Como Dandara lutou tanto,
Que fez livre um Quilombo
Resistência e esperança.

Qual era criança feliz e inocente
Das tribos recebiam as palavras do “Griot”,
Adolescentes cultivando esperança,
Cabelos para cima, cortados, tranças...
Chega o açoite para esmagar,
Correntes firmes aos punhos
Cogita que acabou a liberdade...
... O que era cabelo foi raspado,
... A trança alisada. A identidade jogada ao mar

Não mais solidariedade. Não mais identidade
Química na cabeça, tinta,
várias cores.

O rio que nadavas se perdeu em alto mar,
Depois o oceano vasta solidão.
Agora esgoto nojento
Nem peixe fresco, nem caça, nem...

- Pão?

Sinfonia do sapo e do grilo, trilha sonora
Dá fome, dá cansaço, deu sede.
Cair para não mais levantar.
A fila anda, a fila é grande
Carne podre ensangüentada, jamais a rede sobre a areia
Carne ao tatu não faltará.

Ontem povoado sem propriedade privada,
A todos a pesca, a caça alimentava,
O sono dormido à rede
Sob as tendas coletivas
Hoje sarjeta abandonado
Modernas malocas apertadas,
Sobrevivendo da esmola,
Nascendo e morrendo na merda
E a esperança que de cedo aprendia a caça
Moleque vida louca que na noite sem sono, sombrio
Amanhece aos olhos da Mãe Negra
O corpo boiando no rio

Ontem plena liberdade,
Do prazer de viver...
Hoje o lema Kapital:
Trabalhar, Trabalhar e morrer. .
Presos a corrente da mente
Da imagem da televisão
Cego, mudo e surdo
Obediente cidadão, serviçal da nação/patrão.
E assim gozando a ilusão
Ao som da ópera fantasma dança, dança...
Dança!
...Opressão!


VI

Fez-se um povo que o piano carrega.
Que produz riqueza com lealdade perfídia
Que move a roda do motor poeta
Tramando o sonho da liberdade viva.

Viva. Vivas. Mas que sonho é este?
Que na primeira navalha se... Entrega?
Atribuído ao herói a libertação da vida que
Logo, aliada ao capataz perverso, falacioso ao povo
Esquerda,
esquerda f...
...perdida!

Diz-se lindo o pendão da esperança!
Diz-se símbolo augusto da paz!
Mas, tua nobre presença matança
Esconde o feio que a pátria se faz...
Tu que engendras a tabula fortuna,
Corre venoso suor terra a baixo
Tua mente sedada e estraçalhada
Apaga na luz da bala do capacho.

Fatal atroz que a gente esmaga,
Suprimiu a solidariedade da voz do mundo.
As valas que Colombo abriu nas vagas,
Seguido por outros, a busca do ouro profundo!
Mas é sangrenta demais a busca pelo tesouro...

A luta, o sonho da liberdade profunda.
Dos Quilombos surge a chama
Chama pelo diamante SOLIDARIEDADE
Trabalho! Trabalho!
A VIDA clama.
Se vir, mentes tônicas, dispostas
Ao sonho realizar...
Virão que a arma que matou Zumbi
Pro seu peito voltará
Pretos. Povo, dilacerar essa nação/patrão
- lutar?
E se não faltarem os abutres...

...Não deixe Sol.
...não deixe o Sol
Te fulgurar!

Autor
Góes

domingo, 23 de outubro de 2011

VIVA O DOMINGO

HOJE É DOMINGO, COMO SE NÃO BASTASSE O DOMINGO TAMBÉM É PRIMAVERA
PARA ALGUNS, É DIA DE MACARRÃO. PARA OUTROS PERMANECE A SOLIDÃO
ALGUNS LOTAM OS ESTÁDIOS DE FUTEBOL, OUTROS LOTAM PRESÍDIOS
ALGUNS ACORDARAM AGORA A POUCO, ESPREGUIÇARAM, FORAM À JANELA, OUVIRAM OS PÁSSAROS, VESTIU A BERMUDA PRETA E A CAMISETA REGATA, PEGOU O JORNAL NA BANCA, ACENDEU O CIGARRO E SENTOU NO BANCO DA PRAÇA PRA VER QUEM SERÁ O CRAQUE DA RODADA.
OUTROS, DO OUTRO LADO DA PRAÇA ESTAVAM JOGADOS, COM A BOCA TODA CARCOMIDA PELO CRAQUE, CAMISA SUJA, BERMUDA URINADA.
AQUELE OUVIU O GRITO: “O MACARRÃO ESTÁ PRONTO AMOR”. ESTE OUVIU O GRITO “SAI DAÍ VAGABUNDO, NÃO TEM CASA CARACA”, LEVANTA CAMBALEANDO, ANDAR PENDULAR E SE VAI PRA ALGUM LUGAR, PRA VOLTAR A NOITE.
ESTE É O DOMINGO, ENSOLARADO, QUENTE, ONDE INÚMERAS GARRAFAS DE CERVEJA CIRCULAM NAS MÃOS DOS FILHOS QUE NÃO VEEM A HORA DE COMPLETAR 18.
DOMINGO QUE JOGA O CORINTHIANS, TEM FAUSTÃO E GUGU, TERCEIRO TEMPO
E MUITA GENTE SOFRENDO. VIVA O DOMINGO

sábado, 15 de outubro de 2011

Conto de escola

CONTO DE ESCOLA


Machado de Assis.



A escola era na Rua do Costa, um sobradinho de grade de pau. O ano era de 1840. Naquele dia - uma segunda-feira, do mês de maio - deixei-me estar alguns instantes na Rua da Princesa a ver onde iria brincar a manhã. Hesitava entre o morro de S. Diogo e o Campo de Sant'Ana, que não era então esse parque atual, construção de gentleman, mas um espaço rústico, mais ou menos infinito, alastrado de lavadeiras, capim e burros soltos. Morro ou campo? Tal era o problema. De repente disse comigo que o melhor era a escola. E guiei para a escola. Aqui vai a razão.

Na semana anterior tinha feito dois suetos, e, descoberto o caso, recebi o pagamento das mãos de meu pai, que me deu uma sova de vara de marmeleiro. As sovas de meu pai doíam por muito tempo. Era um velho empregado do Arsenal de Guerra, ríspido e intolerante. Sonhava para mim uma grande posição comercial, e tinha ânsia de me ver com os elementos mercantis, ler, escrever e contar, para me meter de caixeiro. Citava-me nomes de capitalistas que tinham começado ao balcão. Ora, foi a lembrança do último castigo que me levou naquela manhã para o colégio. Não era um menino de virtudes.

Subi a escada com cautela, para não ser ouvido do mestre, e cheguei a tempo; ele entrou na sala três ou quatro minutos depois. Entrou com o andar manso do costume, em chinelas de cordovão, com a jaqueta de brim lavada e desbotada, calça branca e tesa e grande colarinho caído. Chamava-se Policarpo e tinha perto de cinqüenta anos ou mais. Uma vez sentado, extraiu da jaqueta a boceta de rapé e o lenço vermelho, pô-los na gaveta; depois relanceou os olhos pela sala. Os meninos, que se conservaram de pé durante a entrada dele, tornaram a sentar-se. Tudo estava em ordem; começaram os trabalhos.

- Seu Pilar, eu preciso falar com você, disse-me baixinho o filho do mestre.

Chamava-se Raimundo este pequeno, e era mole, aplicado, inteligência tarda. Raimundo gastava duas horas em reter aquilo que a outros levava apenas trinta ou cinqüenta minutos; vencia com o tempo o que não podia fazer logo com o cérebro. Reunia a isso um grande medo ao pai. Era uma criança fina, pálida, cara doente; raramente estava alegre. Entrava na escola depois do pai e retirava-se antes. O mestre era mais severo com ele do que conosco.

- O que é que você quer?

- Logo, respondeu ele com voz trêmula.

Começou a lição de escrita. Custa-me dizer que eu era dos mais adiantados da escola; mas era. Não digo também que era dos mais inteligentes, por um escrúpulo fácil de entender e de excelente efeito no estilo, mas não tenho outra convicção. Note-se que não era pálido nem mofino: tinha boas cores e músculos de ferro. Na lição de escrita, por exemplo, acabava sempre antes de todos, mas deixava-me estar a recortar narizes no papel ou na tábua, ocupação sem nobreza nem espiritualidade, mas em todo caso ingênua. Naquele dia foi a mesma coisa; tão depressa acabei, como entrei a reproduzir o nariz do mestre, dando-lhe cinco ou seis atitudes diferentes, das quais recordo a interrogativa, a admirativa, a dubitativa e a cogitativa. Não lhes punha esses nomes, pobre estudante de primeiras letras que era; mas, instintivamente, dava-lhes essas expressões. Os outros foram acabando; não tive remédio senão acabar também, entregar a escrita, e voltar para o meu lugar.

Com franqueza, estava arrependido de ter vindo. Agora que ficava preso, ardia por andar lá fora, e recapitulava o campo e o morro, pensava nos outros meninos vadios, o Chico Telha, o Américo, o Carlos das Escadinhas, a fina flor do bairro e do gênero humano. Para cúmulo de desespero, vi através das vidraças da escola, no claro azul do céu, por cima do morro do Livramento, um papagaio de papel, alto e largo, preso de uma corda imensa, que bojava no ar, uma coisa soberba. E eu na
escola, sentado, pernas unidas, com o livro de leitura e a gramática nos joelhos.

- Fui um bobo em vir, disse eu ao Raimundo.

- Não diga isso, murmurou ele.

Olhei para ele; estava mais pálido. Então lembrou-me outra vez que queria pedir-me alguma coisa, e perguntei-lhe o que era. Raimundo estremeceu de novo, e, rápido, disse-me que esperasse um pouco; era uma coisa particular.

- Seu Pilar... murmurou ele daí a alguns minutos.

- Que é?

- Você...

- Você quê?

Ele deitou os olhos ao pai, e depois a alguns outros meninos. Um destes, o Curvelo, olhava para ele, desconfiado, e o Raimundo, notando-me essa circunstância, pediu alguns minutos mais de espera. Confesso que começava a arder de curiosidade. Olhei para o Curvelo, e vi que parecia atento; podia ser uma simples curiosidade vaga, natural indiscrição; mas podia ser também alguma coisa entre eles. Esse Curvelo era um pouco levado do diabo. Tinha onze anos, era mais velho que nós.

Que me quereria o Raimundo? Continuei inquieto, remexendo-me muito, falando-lhe baixo, com instância, que me dissesse o que era, que ninguém cuidava dele nem de mim. Ou então, de tarde...

- De tarde, não, interrompeu-me ele; não pode ser de tarde.

- Então agora...

- Papai está olhando.

Na verdade, o mestre fitava-nos. Como era mais severo para o filho, buscava-o muitas vezes com os olhos, para trazê-lo mais aperreado. Mas nós também éramos finos; metemos o nariz no livro, e continuamos a ler. Afinal cansou e tomou as folhas do dia, três ou quatro, que ele lia devagar, mastigando as idéias e as paixões. Não esqueçam que estávamos então no fim da Regência, e que era grande a agitação pública. Policarpo tinha decerto algum partido, mas nunca pude averiguar esse ponto. O pior que ele podia ter, para nós, era a palmatória. E essa lá estava, pendurada do portal da janela, à direita, com os seus cinco olhos do diabo. Era só levantar a mão, despendurá-la e brandi-la, com a força do costume, que não era pouca. E daí, pode ser que alguma vez as paixões políticas dominassem nele a ponto de poupar-nos uma ou outra correção. Naquele dia, ao menos, pareceu-me que lia as folhas com muito interesse; levantava os olhos de quando em quando, ou tomava uma pitada, mas tornava logo aos jornais, e lia a valer.

No fim de algum tempo - dez ou doze minutos - Raimundo meteu a mão no bolso das calças e olhou para mim.

- Sabe o que tenho aqui?

- Não.

- Uma pratinha que mamãe me deu.

- Hoje?

- Não, no outro dia, quando fiz anos...

- Pratinha de verdade?

- De verdade.

Tirou-a vagarosamente, e mostrou-me de longe. Era uma moeda do tempo do rei, cuido que doze vinténs ou dois tostões, não me lembro; mas era uma moeda, e tal moeda que me fez pular o sangue no coração. Raimundo revolveu em mim o olhar pálido; depois perguntou-me se a queria para mim. Respondi-lhe que estava caçoando, mas ele jurou que não.

- Mas então você fica sem ela?

- Mamãe depois me arranja outra. Ela tem muitas que vovô lhe deixou, numa caixinha; algumas são de ouro. Você quer esta?

Minha resposta foi estender-lhe a mão disfarçadamente, depois de olhar para a mesa do mestre. Raimundo recuou a mão dele e deu à boca um gesto amarelo, que queria sorrir. Em seguida propôs-me um negócio, uma troca de serviços; ele me daria a moeda, eu lhe explicaria um ponto da lição de sintaxe. Não conseguira reter nada do livro, e estava com medo do pai. E concluía a proposta esfregando a pratinha nos joelhos...

Tive uma sensação esquisita. Não é que eu possuísse da virtude uma idéia antes própria de homem; não é também que não fosse fácil em empregar uma ou outra mentira de criança. Sabíamos ambos enganar ao mestre. A novidade estava nos termos da proposta, na troca de lição e dinheiro, compra franca, positiva, toma lá, dá cá; tal foi a causa da sensação. Fiquei a olhar para ele, à toa, sem poder dizer nada.

Compreende-se que o ponto da lição era difícil, e que o Raimundo, não o tendo aprendido, recorria a um meio que lhe pareceu útil para escapar ao castigo do pai. Se me tem pedido a coisa por favor, alcançá-la-ia do mesmo modo, como de outras vezes, mas parece que era lembrança das outras vezes, o medo de achar a minha vontade frouxa ou cansada, e não aprender como queria, - e pode ser mesmo que em alguma ocasião lhe tivesse ensinado mal, - parece que tal foi a causa da proposta. O pobre-diabo contava com o favor, - mas queria assegurar-lhe a eficácia, e daí recorreu à moeda que a mãe lhe dera e que ele guardava como relíquia ou brinquedo; pegou dela e veio esfregá-la nos joelhos, à minha vista, como uma tentação... Realmente, era bonita, fina, branca, muito branca; e para mim, que só trazia cobre no bolso, quando trazia alguma coisa, um cobre feio, grosso, azinhavrado...

Não queria recebê-la, e custava-me recusá-la. Olhei para o mestre, que continuava a ler, com tal interesse, que lhe pingava o rapé do nariz. - Ande, tome, dizia-me baixinho o filho. E a pratinha fuzilava-lhe entre os dedos, como se fora diamante... Em verdade, se o mestre não visse nada, que mal havia? E ele não podia ver nada, estava agarrado aos jornais, lendo com fogo, com indignação...

- Tome, tome...

Relancei os olhos pela sala, e dei com os do Curvelo em nós; disse ao Raimundo que esperasse. Pareceu-me que o outro nos observava, então dissimulei; mas daí a pouco deitei-lhe outra vez o olho, e - tanto se ilude a vontade! - não lhe vi mais nada. Então cobrei ânimo.

- Dê cá...

Raimundo deu-me a pratinha, sorrateiramente; eu meti-a na algibeira das calças, com um alvoroço que não posso definir. Cá estava ela comigo, pegadinha à perna. Restava prestar o serviço, ensinar a lição e não me demorei em fazê-lo, nem o fiz mal, ao menos conscientemente; passava-lhe a explicação em um retalho de papel que ele recebeu com cautela e cheio de atenção. Sentia-se que despendia um esforço cinco ou seis vezes maior para aprender um nada; mas contanto que ele escapasse ao castigo, tudo iria bem.

De repente, olhei para o Curvelo e estremeci; tinha os olhos em nós, com um riso que me pareceu mau. Disfarcei; mas daí a pouco, voltando-me outra vez para ele, achei-o do mesmo modo, com o mesmo ar, acrescendo que entrava a remexer-se no banco, impaciente. Sorri para ele e ele não sorriu; ao contrário, franziu a testa, o que lhe deu um aspecto ameaçador. O coração bateu-me muito.

- Precisamos muito cuidado, disse eu ao Raimundo.

- Diga-me isto só, murmurou ele.

Fiz-lhe sinal que se calasse; mas ele instava, e a moeda, cá no bolso, lembrava-me o contrato feito. Ensinei-lhe o que era, disfarçando muito; depois, tornei a olhar para o Curvelo, que me pareceu ainda mais inquieto, e o riso, dantes mau, estava agora pior. Não é preciso dizer que também eu ficara em brasas, ansioso que a aula acabasse; mas nem o relógio andava como das outras vezes, nem o mestre fazia caso da escola; este lia os jornais, artigo por artigo, pontuando-os com exclamações, com gestos de ombros, com uma ou duas pancadinhas na mesa. E lá fora, no céu azul, por cima do morro, o mesmo eterno papagaio, guinando a um lado e outro, como se me chamasse a ir ter com ele. Imaginei-me ali, com os livros e a pedra embaixo da mangueira, e a pratinha no bolso das calças, que eu não daria a ninguém, nem que me serrassem; guardá-la-ia em casa, dizendo a mamãe que a tinha achado na rua. Para que me não fugisse, ia-a apalpando, roçando-lhe os dedos pelo cunho, quase lendo pelo tato a inscrição, com uma grande vontade de espiá-la.

- Oh! seu Pilar! bradou o mestre com voz de trovão.

Estremeci como se acordasse de um sonho, e levantei-me às pressas. Dei com o mestre, olhando para mim, cara fechada, jornais dispersos, e ao pé da mesa, em pé, o Curvelo. Pareceu-me adivinhar tudo.

- Venha cá! bradou o mestre.

Fui e parei diante dele. Ele enterrou-me pela consciência dentro um par de olhos pontudos; depois chamou o filho. Toda a escola tinha parado; ninguém mais lia, ninguém fazia um só movimento. Eu, conquanto não tirasse os olhos do mestre, sentia no ar a curiosidade e o pavor de todos.

- Então o senhor recebe dinheiro para ensinar as lições aos outros? disse-me o Policarpo.

- Eu...

- Dê cá a moeda que este seu colega lhe deu! clamou.

Não obedeci logo, mas não pude negar nada. Continuei a tremer muito. Policarpo bradou de novo que lhe desse a moeda, e eu não resisti mais, meti a mão no bolso, vagarosamente, saquei-a e entreguei-lha. Ele examinou-a de um e outro lado, bufando de raiva; depois estendeu o braço e atirou-a à rua. E então disse-nos uma porção de coisas duras, que tanto o filho como eu acabávamos de praticar uma ação feia, indigna, baixa, uma vilania, e para emenda e exemplo íamos ser castigados. Aqui pegou da palmatória.

- Perdão, seu mestre... solucei eu.

- Não há perdão! Dê cá a mão! Dê cá! Vamos! Sem-vergonha! Dê cá a mão!

- Mas, seu mestre...

- Olhe que é pior!

Estendi-lhe a mão direita, depois a esquerda, e fui recebendo os bolos uns por cima dos outros, até completar doze, que me deixaram as palmas vermelhas e inchadas. Chegou a vez do filho, e foi a mesma coisa; não lhe poupou nada, dois, quatro, oito, doze bolos. Acabou, pregou-nos outro sermão. Chamou-nos sem-vergonhas, desaforados, e jurou que se repetíssemos o negócio apanharíamos tal castigo que nos havia de lembrar para todo o sempre. E exclamava: Porcalhões! tratantes! faltos de brio!

Eu, por mim, tinha a cara no chão. Não ousava fitar ninguém, sentia todos os olhos em nós. Recolhi-me ao banco, soluçando, fustigado pelos impropérios do mestre. Na sala arquejava o terror; posso dizer que naquele dia ninguém faria igual negócio. Creio que o próprio Curvelo enfiara de medo. Não olhei logo para ele, cá dentro de mim jurava quebrar-lhe a cara, na rua, logo que saíssemos, tão certo como três e dois serem cinco.

Daí a algum tempo olhei para ele; ele também olhava para mim, mas desviou a cara, e penso que empalideceu. Compôs-se e entrou a ler em voz alta; estava com medo. Começou a variar de atitude, agitando-se à toa, coçando os joelhos, o nariz. Pode ser até que se arrependesse de nos ter denunciado; e na verdade, por que denunciar-nos? Em que é que lhe tirávamos alguma coisa?

- Tu me pagas! tão duro como osso! dizia eu comigo.

Veio a hora de sair, e saímos; ele foi adiante, apressado, e eu não queria brigar ali mesmo, na Rua do Costa, perto do colégio; havia de ser na Rua larga São Joaquim. Quando, porém, cheguei à esquina, já o não vi; provavelmente escondera-se em algum corredor ou loja; entrei numa botica, espiei em outras casas, perguntei por ele a algumas pessoas, ninguém me deu notícia. De tarde faltou à escola.

Em casa não contei nada, é claro; mas para explicar as mãos inchadas, menti a minha mãe, disse-lhe que não tinha sabido a lição. Dormi nessa noite, mandando ao diabo os dois meninos, tanto o da denúncia como o da moeda. E sonhei com a moeda; sonhei que, ao tornar à escola, no dia seguinte, dera com ela na rua, e a apanhara, sem medo nem escrúpulos...

De manhã, acordei cedo. A idéia de ir procurar a moeda fez-me vestir depressa. O dia estava esplêndido, um dia de maio, sol magnífico, ar brando, sem contar as calças novas que minha mãe me deu, por sinal que eram amarelas. Tudo isso, e a pratinha... Saí de casa, como se fosse trepar ao trono de Jerusalém. Piquei o passo para que ninguém chegasse antes de mim à escola; ainda assim não andei tão depressa que amarrotasse as calças. Não, que elas eram bonitas! Mirava-as, fugia aos encontros, ao lixo da rua...

Na rua encontrei uma companhia do batalhão de fuzileiros, tambor à frente, rufando. Não podia ouvir isto quieto. Os soldados vinham batendo o pé rápido, igual, direita, esquerda, ao som do rufo; vinham, passaram por mim, e foram andando. Eu senti uma comichão nos pés, e tive ímpeto de ir atrás deles. Já lhes disse: o dia estava lindo, e depois o tambor... Olhei para um e outro lado; afinal, não sei como foi, entrei a marchar também ao som do rufo, creio que cantarolando alguma coisa: Rato na casaca... Não fui à escola, acompanhei os fuzileiros, depois enfiei pela Saúde, e acabei a manhã na Praia da Gamboa. Voltei para casa com as calças enxovalhadas, sem pratinha no bolso nem ressentimento na alma. E contudo a pratinha era bonita e foram eles, Raimundo e Curvelo, que me deram o primeiro conhecimento, um da corrupção, outro da delação; mas o diabo do tambor...

sábado, 1 de outubro de 2011

Vidas ondas

"Vou como as ondas do mar. Vai, volta, rasteja, sobe, desce. Hora leva o limo, retorna com ostras. Hora leva estrelas, retorna com o limo. Vai, salta por outras vivas, água morta, água viva. Volta por baixo, arrasta vidas, devolve sem vidas. Não vive, mas vive com vidas"

sábado, 27 de agosto de 2011

Te quiero

Te quiero
Mario Benedetti

Tus manos son mi caricia
mis acordes cotidianos
te quiero porque tus manos
trabajan por la justicia

si te quiero es porque sos
mi amor mi cómplice y todo
y en la calle codo a codo
somos mucho más que dos

tus ojos son mi conjuro
contra la mala jornada
te quiero por tu mirada
que mira y siembra futuro

tu boca que es tuya y mía
tu boca no se equivoca
te quiero porque tu boca
sabe gritar rebeldía

si te quiero es porque sos
mi amor mi cómplice y todo
y en la calle codo a codo
somos mucho más que dos

y por tu rostro sincero
y tu paso vagabundo
y tu llanto por el mundo
porque sos pueblo te quiero

y porque amor no es aureola
ni cándida moraleja
y porque somos pareja
que sabe que no está sola

te quiero en mi paraíso
es decir que en mi país
la gente viva feliz
aunque no tenga permiso

si te quiero es porque sos
mi amor mi cómplice y todo
y en la calle codo a codo
somos mucho más que dos.

domingo, 8 de maio de 2011

EM MAIO

Já não há mais razão de chamar as lembranças
e mostrá-las ao povo
em maio.
Em maio sopram ventos desatados
por mãos de mando, turvam o sentido
do que sonhamos.
Em maio uma tal senhora liberdade se alvoroça,
e desce às praças das bocas entreabertas
e começa:
Outrora, nas senzalas, os senhores...
Mas a liberdade que desce à praça
nos meados de maio
pedindo rumores,
é uma senhora esquálida, seca, desvalida
e nada sabe de nossa vida.
A liberdade que sei é uma menina sem jeito,
vem montada no ombro dos moleques
e se esconde
no peito, em fogo, dos que jamais irão
à praça.
Na praça estão os fracos, os velhos, os decadentes
e seu grito: Ó bendita Liberdade!
E ela sorri e se orgulha, de verdade,
do muito que tem feito!

Oswaldo de Camargo

sábado, 19 de março de 2011

Que mundo é esse seu presidente...

fui dá um rolê, parei no posto pra abastecer, pedir pra colocar 10 conto
enquanto o cara abastace fui pegar a grana e percebi que estava sem a carteira
quando o cara voltou falei que ia pegar o dinheiro em casa, aí ele começou a reclamar, não tem dinheiro porque abastece, e saiu de perto
eu vi que tinha 5 conto no bolso, sái do carro nervoso, joguei o dinheiro e falei: se eu não voltar em 5 minuto vcs chamam a polícia, sou trabalhador, não vou roubar cinco reais, joguei o dinheiro em cima dos caras, eram tres
vim em casa peguei o que faltava e levei
chegando no posto já estava fechando, minha ideia era jogar e falar um monte, aí chamei o carinha, ele nem lembrava mais. Aí eu falei com calma, vim trazer o dinheiro, já esqueceu.
o maluco ficou todo contente e me chamou no canto e disse baixinho, desculpa aí, é que as pessoas fazem de proprósito e eles descontam do meu salário, eu ganho pouquinho... o cara era preto e com sotaque de nordestino
cortou meu coração, aí eu peguei na mão dele com as duas mãos e falei , desculpa eu irmão.
aí ele teve que chamar o gerente me mostrar pro cara ver que eu fui pagar.
Que Mundo é esse...

ta tudo torto

Os passos dados pertencem aos que nele andam,
àquelas que crescem por meio do salto torto
torta é a vida como o pescoço torno.
Assim, tudo está torcido:
os olhos,
o coração,
braço,
o olhar.
Distorcido como olhar no escuro.
Após acordar em lágrimas,
pálpebras inchadas, boca torta,
cara amassada e torta.
O movimento pendular do bêbado torto,
torto de cachaça,
de tristeza,
de agonia.
Torto
.
Como é a VIDA.