A casa estava escura, pela fresta
da janela entrara um fecho de Sol. Como era tarde, por volta de uma hora, eu
estranhei o silêncio. Entrei com meus passos leves, com cuidado de não fazer barulho.
Não queria incomodar mamãe que estava de cama por três dias. Sentei na cama que estalou, fiz careta para mim. Puxei o tênis amarelo de sujeira do chão e junto o
meião fedorento. Levantei nas pontinhas dos pés descalços arranhando as unhas amarelas
do dedão no assoalho.
- Tú chegou?
- Sim maiê!
- Preciso que compre uma coisa!
Estava com receio de ir no quarto,
corri para o banheiro e liguei o chuveiro de água fria. Pensei na vida por 15
minutos ou mais. Enxuguei-me, vesti a mesma roupa suada, puxei a água do chão
com o rodo e fui à cozinha lavar a louça.
- Vem aqui! Disse mamãe.
- Já vou maiê! Respondi baixinho.
Agora! Replicou. Eu fui.
No quarto escuro, a cama de casal
com lençol vermelho que não dava para ver com precisão, do lado direito da cama
tinha um berço, onde dormira a menininha, no outro canto um cesto com roupas. No
pé da cama eu vi um bolo de pano, como se fossem fraudas, uma três, emboladas
no chão de taco. Olhei com olhos baixos e percebi que tinham manchas de sangue.
Olhei mamãe no rosto, seu sorriso relâmpago me fez bico, entreguei-lhe o rosto,
o beijo de todos os dias estava frio e tenso, senti que me beijou rápido, com
pressa e nem me afagou os cabelos crespos. Mal pegou na minha mão. Olhei nos
seus olhos, os vi fundos, com remelas e vermelhos, pensei pra mim “maiê chorou
e muito”, fui descendo o olhar, ela vestia uma camisola que depois vi que era
bege, cobria todo o corpo e as pernas, tinha nos pés meias grossas, voltei pro
rosto, sorri tristonho, seus olhos brilharam. Ela sabia que eu sabia.
- quer café maiê?
- Não, não.
Quero que vá á farmácia, tá? Passa na padaria, também!
Pensei pra
mim: “maiê não nega meu café, ela não está bem”.
- Fio. Compre
na farmácia Água Inglesa, mas fique esperto, não quero que ninguém veja, fale
baixinho para o seu Luíde, se ele perguntar pra quem é, diga que é para uma
vizinha. Não leia nada, não tire do saquinho.
- Um! Disse eu.
- Ah,
continuou mamãe, com o que sobrar tu compra pão, meu fio deve está com fome.
Não queria
sair do quarto, senti mamãe na solidão, e que algo não estava normal. Sentei na
cama e comecei a falar do treino. Ela me olhava com cara de dor, mas tentava
sorrir. Quando terminei a resenha ela disse: - A Água Inglesa!
Levantei, dei um
passo para trás, senti que a tal água era coisa que mamãe precisava, me
convenci que teria que ser logo. Fui com pressa.
No caminho senti
tristeza, três dias que ela estava neste estado. Nem foi trabalhar, na noite
anterior discutiu com o pai. Ele dizia que era problema dela, que não foi culpa
dele e que ele não queria mais. Ela soluçava abafado para ninguém ouvi. Não conseguia
entender como as coisas mudaram de um dia para o outro. Ontem estávamos todos
felizes, comemorando o aniversário da menininha, depois todos tristes, mamãe
três dias no quarto escuro e pai sumiu.
Quando pedi a
água o Luíde farmacêutico olhou bem nos meus olhos e perguntou:
- Pra que
diacho você quer isto rapaz? Essa coisa não te serve.
- É para uma
senhora, ela pediu para comprar! Respondi alto e mau criado.
- Vou te
vender, mas quero saber quem está com pouca vergonha! Disse o velho grisalho.
- Tenho ordens
para não dizer, por favor, estou com apressado! Retruquei.
O caminho
parecia eterno, comprei os pães com o troco e corri para casa. Minha cabeça
formigava, parecia que tinha borboletas no cérebro, a imagem daquela senhora
jogada na cama, no quarto escuro, suas olheiras e as fraudas com sangue me perturbavam.
Cada vez que me aproximava meu coração apertava.
Chegando em
casa cumpri o ritual. Passos lentos e calmos, quando estava na sala ouvi a voz
de pai: - Por que você faz estas coisas mulher!? Não disse que era perigoso?
Mamãe só
chorava. – Está doendo! Disse aos prantos.
- Não podemos
ir ao hospital! Retrucou o pai.
Adentrei o
quarto, meus olhos foram diretos para o chão, tinha mais panos brancos e mais
sangue.
- Me dá! Disse
o veio sem me cumprimentar.
Estendi o
braço e entreguei o pacote. – Vai comer! Faz chá! Tornou a falar sem olhar pra
mim.
Antes de sair
sorri para mamãe, que tentava disfarçar os prantos, antes de retornar olhei
para o pai, coisa de pouco costume. Pela primeira vez a feição dela me
assustara. Nos seus olhos existiam grandes contornos roxos, as pupilas estavam
bem vermelhas, suas gordas maçãs caíra assustadoramente. Senti meu coração
gelado. Ele me olhou de lado. Pela primeira vez o vi fraco.
Corri para o
quintal comendo pão. Um amigo me chamou para ir com ele ao mercado. Senti que
deveria sair.
Quando
retornei não encontrei mamãe nem o pai. Só meus irmãos e duas vizinhas. Perguntei
por ela, disseram que estava no hospital e que não voltaria para casa naquela
noite.
Só a vi três
dias depois.
Parecia mais triste do que antes, mas não tinha
olheiras. Seu rosto estava melhor, os olhos não estavam vermelhos. Pensei
comigo: “maiê dormiu”. Ela fez bico, entreguei-lhe o rosto, ganhei um beijo
quente e demorado, e também um abraço. Disse que me amava. Neste dia dormi mais
confortável e até hoje tenho medo de
precisar comprar Água Inglesa.
Lindeza de texto. Me trouxe uma saudade , uma colega, tímida e recatada, que como diziam os antigos: um dia se "perdeu" no seu primeiro amor , e resolveu curar suas magoas e vergonha, nestes buracos e perdeu tudo: o filho, a saúde, o direito a um atendimento decente, depois de uns dias perdeu o corpo, a alma e até o direito a um velório, a família, tão correta e religiosa não permitiu que os amigos se despedissem dela, e só se descobriu o falecimento dela , do jeito mais duro, chamando ela no portão
ResponderExcluirQuem dera nenhuma mulher precisasse comprar água inglesa! Quanta dor neste Brasil hipócrita que impede que as mulheres pobres decidam sobre seus corpos e suas vidas.
ResponderExcluirTexto com tamanha sensibilidade e delicadeza.
ResponderExcluir